PROGRAMA DO CURSO E CONTEÚDO

UFF-UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
ICHF-GSO - Curso de graduação
Profª Selene Herculano
Programa do curso, módulos e seu conteúdo;roteiro de exercício de pesquisa

CONTEÚDO MÓDULO 8 ROTEIROS


ROTEIROS PARA VISITA A INSTITUTOS DE PESQUISA SOCIAL E PARA A ELABORAÇÃO DE RELATÓRIO DE VISITA
Disciplina Métodos  e Técnicas de Pesquisa I
Profª Selene Herculano
UFF-ICHF-GSO – 1º sem 2011

ROTEIRO PARA VISITA:
Identificação:
·         Nome da instituição escolhida e seu órgão interno; tipo da instituição (se pública, particular ou do terceiro setor; se federal, estadual ou municipal, caso seja pública)
·         Data e local
·         Alunos
·         Nome, cargo e função das pessoas contactadas e entrevistadas
·         Perfil profissional de seu corpo técnico (formação, idade, tempo na instituição)
Conteúdo da pesquisa:
·         Breve histórico da instituição e seu perfil de atuação
·         Pesquisa recente em foco: título da pesquisa, tipo (qualitativa ou quantitativa), período, abrangência temporal e espacial, objeto, objetivo, resultados encontrados
·         Metodologia utilizada: tipo de amostragem e sua escolha, exemplo de questionário empregado e/ou de roteiro de entrevista; escolha de grupo focal, se for o caso
·         Custo aproximado da pesquisa

ROTEIRO PARA A REDAÇÃO DO RELATÓRIO DE VISITA:
Os mesmos tópicos acima apontados, acrescidos dos seguintes itens:
·         Comentários dos alunos avaliando a pesquisa da instituição e seus resultados
·         Comentários dos alunos sobre a visita: grau de acessibilidade e de dificuldade, organização, corpo técnico, grau de viabilidade de vir a incorporar alunos recém-formados


Conteúdo dos módulos 6 e 7


MÉTODOS E TÉCNICAS EM PESQUISA SOCIAL –
Módulo 6: Usos da pesquisa social: Indicadores Sociais; Modelagem – cenários prospectivos.O marketing como pesquisa social.
Módulo 7: a elaboração de projetos e de um trabalho científico; evitando o plágio

Módulo 6: Usos da pesquisa social: Indicadores; Modelagem; pesquisa de marketing
Indicadores sociais
Os indicadores constituem informações condensadas, simplificadas, quantificadas, que facilitam a comunicação, comparações e o processo de decisão. Os indicadores sociais propõem-se, ainda, a ser um incentivo para a mobilização da sociedade afim de pressionar os que tomam as decisões.
Começaram a ser usados em escala mundial em 1947, na Economia, quando se disseminou a medição do Produto Interno Bruto (GNP - "Gross Domestic Product")  e o PIB per capita como indicadores de progresso econômico.  Todo indicador é passível de crítica e critica-se a ineficácia de se quantificar o PIB per capita sem se ter o pulso da real distribuição de renda. A própria metodologia de mensuração do PIB é inadequada, pois pode contabilizar como atividades econômicas ações na verdade destrutivas, como desmatamentos e demolições e até mesmo imorais, como as empresas de prostituição e de tráfico de crianças.
Em 1990 a ONU, dando-se conta do caráter restritivo do PIB, deu início à medição de um desenvolvimento com rosto humano, através do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano/HDI), proposto por Amartya Sem (Nobel em Economia). O IDH sintetiza quatro indicadores, que compõem “clusters” ou agrupamentos de variáveis (expectativa de vida, taxa de alfabetização, anos de escolaridade e PIB/capita). Tratava-se de se ater a aspectos de fácil mensuração e que refletiriam a efetiva boa conseqüência do desenvolvimento na vida das pessoas. Seus pressupostos são óbvios: quanto maior a instrução, maior a informação e a predisposição para a ação positiva; quanto mais universalmente distribuída a educação, menos concentrada será a renda; quanto mais assistida uma pessoa - em nutrição, saúde, saúde pública, salubridade no trabalho, segurança contra formas de violência - mais longa sua expectativa de vida. O IDH dispõe os cerca de 160 países em um ranking.
Outros indicadores agregados (também chamados de sintéticos) são lembrados por GADREY & JANY-CATRICE[1]: o Índice de Saúde Social - ISS; o Barômetro das Desigualdades e da Pobreza na França - BIP40 (baromêtre dês inegalités et de La pauvreté); o Índice de Segurança Pessoal – ISP; o índice de bem-estar econômico sustentável – IBES; o Índice de Poupança Verdadeira – GS (genuine savings).
No ISS, variáveis específicas de riscos sociais são atribuídas a grupos de idade diferentes: por exemplo, maus tratos, mortalidade e pobreza para as crianças; uso de drogas, suicídio, abandono de estudos e gravidez para os adolescentes; desemprego, plano de saúde e salário médio para os adultos; expectativa de vida e pobreza para os idosos. No BIP40, além das variáveis emprego, renda, saúde e educação, entram em análise também a moradia e a justiça (por exemplo, taxa de presidiários em relação à população). O ISP é uma metodologia canadense e está composta por três aspectos: segurança econômica (emprego, seguridade social e vulnerabilidade financeira), seguro saúde (proteção e atendimento a doenças); segurança física (estar ao abrigo da criminalidade e de acidentes).  O GS é um indicador usado pelo Banco Mundial a partir de 2003, onde as atividades envolvidas com o esgotamento de recursos naturais (florestas; petróleo) passam a ser contabilizadas como descapitalização, isto é, custos, e portanto descontadas da poupança social.
No Canadá usa-se também a ferramenta dos indicadores para as políticas urbanas e para restringir o “urban sprawl” (espraiamento ou dispersão urbana). Uma cidade com crescimento esperto – “smart growth” – não se espalha pressionando as áreas verdes e rurais, mas, ao contrário, tem uma vizinhança compacta, usos mistos do solo, diversificação habitacional, infraestrutura mais esperta e verde, variedades de transporte, engajamento dos seus cidadãos, dentre outros princípios. O smart growth se compõe de três clusters: forma urbana, habitabilidade e importância econômica. Dentre as 9 variáveis que compõem a forma urbana, destacamos aqui a distância percorrida para o trabalho, a porcentagem de trabalhadores que se deslocam de automóvel para o trabalho e a quilometragem de rede de infra-estrutura de serviços urbanos para cada mil habitantes; dentre as 9 variáveis do item habitabilidade, destacamos hectares de parques e áreas de lazer por mil habitantes, livrarias, educandários, lojas de alimentos especializados e galerias de arte por 10 mil habitantes. Dentre as 9 variáveis do item importância econômica, destacamos o número de negócios por mil habitantes e o “índice Bohemian” relativo a criatividades culturais.
Cobb[2]  insiste em que precisamos criar indicadores e  índices que ajudem a construir um futuro mais desejável e seguro. Precisamos mensurar, sim, e fazê-lo principalmente em termos monetários. "O que não é contado, não conta, não é percebido", escreveram MacGillivray e Zadek[3], citando um velho adágio. Criar indicadores deve ser visto como parte de um esforço para redefinir poder, desafiando a forma pela qual as questões são usualmente enfocadas, retratadas ou omitidas. A NEF – New Economics Foundation – tem realizado pesquisas sobre qualidade de vida e sobre felicidade.
Um indicador nos auxilia a compreender onde estamos, para onde estamos indo e a que distância estamos do ponto que queremos alcançar. Alerta para problemas e ajuda a identificar o que precisa ser feito para superá-los.
Os indicadores podem ser de estado, de impacto/pressão e de resposta (conhecidos segundo a metodologia SPIR – state, pression, impact, response).  Os indicadores de estado mensuram aspectos de uma realidade (por exemplo, o PIB, o IDH); os de pressão ou impacto avaliam impactos de variáveis entre si (por exemplo, taxa de aumento demográfico sobre a taxa de empregos), enquanto que os indicadores de resposta buscam avaliar a capacidade institucional e programática para dar respostas às pressões. Exemplificamos aqui com dois métodos relativos à sustentabilidade ambiental: a AIA – avaliação de impacto ambiental – e a AAE – avaliação ambiental estratégica. A AIA refere-se a projetos a serem concretizados e onde as medidas de mitigação já fazem parte destes, pré-definidas pelos seus autores. Por exemplo, o impactos ambiental de uma UHE projetada e definidos como a perda de flora, ameaça de extinção e deslocamento de fauna e o plano do que fazer para atenuá-los. A AAE é um processo que avalia e acompanha políticas, planos e programas em ação, de forma pró-ativa e integrada com o contexto político e com os usos do território e vendo seus impactos aditivos, sinergéticos e de estresse (não-resiliência). Na metodologia da AAE são importantes a análise de informação, a participação dos agentes envolvidos-impactados (“stakeholders”) e o desenvolvimento de alternativas. Ou seja, o método AAE trabalha com correção de rumo.
LEROY & ACSELRAD propuseram o indicador AEA – Avaliação de Equidade Ambiental[4], com base nos preceitos da Justiça Ambiental, para que nos projetos de investimentos geralmente altamente impactantes para as populações locais sejam levados em consideração os seguintes aspectos: as dinâmicas sociais, as lógicas econômicas e os valores culturais das populações locais; as formas com que constroem seu meio ambiente para moradia, trabalho, práticas religiosas, recreação, reuniões; suas formas de organização, trocas intercâmbios e socialidade; suas práticas estéticas, artísticas e culturais. Daí derivam uma lista de perguntas e critérios (características sócio-demográficas, territorialidade, estrutura institucional e comunitária, recursos comunitários, recursos sociais e políticos, fatores inter-subjetivos) a serem levados em conta pelos empreendedores do projeto e que tem o aspecto de um roteiro de itens a serem obedecidos inclusive na reformulação do projeto, sem a finalidade de compor indicadores, isto é, de estarem expressos numericamente.
Existe um método de apresentação de indicadores que não tem expressão numérica e sim visual. É o dashboard[5], ou painel, inspirado na idéia de um painel de automóvel e proposto para avaliar a sustentabilidade ambiental. Geralmente tem três displays, que correspondem a grupos de variáveis (clusters): economia, saúde social e qualidade ambiental. Há nele setas ou cores que indicam situações de alerta (vermelho), cuidado (amarelo) e sustentável (verde).
O “Atlas da exclusão social”, de Márcio Pochmann, Ricardo Amorim et alli[6] fez uma cartografia da exclusão social no ano 2000, no Brasil e nas cidades de São Paulo, Rio, Curitiba, Fortaleza, Recife  e Belém (analisando o fenômeno da metropolização da pobreza); usaram quatro cores (vermelho, laranja, amaelo e verde) para sinalizar situações e graus de exclusão (do vermelho, para muita exclusão, a verde para situações de inclusão). As dimensões conceituais foram: vida digna, conhecimento, vulnerabilidade. Os índices foram o de pobreza, emprego, desigualdade, alfabetização, escolaridade, juventude exposta à violência. O uso da cartografia permite visualizar pela disposição das cores  no território nacional uma relativa melhora entre os anos de 1960 e 2000 (uso da cartografia para visualização da variação temporal de um indicador). Embora cada mapa se refira a uma única variável – emprego formal, violência, população mais jovem, alfabetização, violência etc., sua simples visualização das cartografias metropolitanas pemite deduzir que baixa escolaridade do jovem, pobreza e falta de empregos formais se relacionam pois coincidem com as mesmas zonas urbanas nas mesmas cores.
Em resumo:
Os indicadores sociais servem para:
       Avaliar necessidades de políticas sociais e monitorar a aplicação de políticas sociais
       Identificar locais com mais necessidade de políticas sociais
       Comparar localidades
       Avaliar a evolução temporal de políticas implantadas
       Classificar localidades para a dotação de recursos e de investimentos
       Pontuar a distância em relação ao uma situação ideal

Os indicadores sociais precisam de:

       Dados quantificáveis e confiáveis
       Um sistema continuado e padronizado de captação de dados
       Uma escala local (bairros; favelas; zonas urbanas)
       Processamento e divulgação periódica
       Atualização constante
       Periodicidade  que os torne comparáveis

Segundo o Banco de Metodologias do Sistema Nacional de Informação de Cidades - SNIC, elaborado pela consultora Maria Inês Pedrosa Nahas para o Ministério das Cidades (PROJETO BRA/04/022), o Brasil dispunha até 2005 de 30 sistemas de indicadores, calculados a partir de 533 indicadores encontrados. Destes, 7 (sete) eram calculados para a totalidade dos municípios brasileiros e 17 (dezessete)  para  a Região Sudeste.

Nahas e sua equipe encontraram os seguintes SISTEMAS DE INDICADORES MUNICIPAIS DE ABRANGÊNCIA NACIONAL:

       1.  Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH – M)
       2.  Índice de Condições de Vida (ICV)
       3.  Índice de Exclusão Social (IES)
       4.  Índice de Carência na Oferta de Serviços Essenciais à Habitação (ICH)
       5.  Índice de Qualidade Institucional dos Municípios (IQIM)
       6.  Índice do Potencial de Desenvolvimento do Município (IPDM)
       7.  Índice Municipal (IM), concernente aos 187 municípios acima de 100 mil hab.

No Estado do Rio de Janeiro, os Indicadores municipais mais empregados são:

       IDH-M (PNUD) – Desenvolvimento Humano Municipal
       IFDM (FIRJAN) – Indicador Firjan de Desenvolvimento Municipal
       IQM (CIDE) – Qualidade Municipal
       IRFS (CNM) –  Responsabilidade Fiscal e Social

Problemas com indicadores:
       Alguns indicadores não se baseiam em metas ou situações ideais e o grau de proximidade ou distância em relação a elas. Sua metodologia, ao invés, consiste em agrupar os dados encontrados e a partir deles próprios estabelecer uma tipologia e classificação. Assim, ser um município bem situado no ranking não significa estar bem em relação ao desejado, mas é uma posição relativa ao universo de municípios considerados. Quanto pior todos forem, tanto melhor aparecerá o menos ruim deles. Neste caso, t ornam-se ritualísticos, usados para visibilidade política.
       O alto grau de agregação (recorte municipal, sem descer a bairros, regiões administrativas ou favelas) resulta em índices edulcorados e que perdem seu sentido como instrumento de avaliação das necessidades a atender tanto quanto das políticas efetivadas. Em cidades altamente desiguais, um índice único para toda a cidade mascara a realidade.
       Por não disporem dos seis elementos necessários (dados quantificáveis e confiáveis; um sistema continuado e padronizado de captação de dados; atualização constante; periodicidade que os torne comparáveis, processamento e divulgação periódica, escala local), os índices sociais que resultam dos indicadores perdem operacionalidade e tendem a contrastar com a realidade percebida a olho nu e a não fazer muito sentido em relação a ela.

Modelagem e cenários futuros
Usaremos como referência para este item o livro de Elaine C. Marcial e Raul J. Grumbach: “Cenários prospectivos: como construir um futuro melhor” (Rio:FGV, 2002) e a tese de Claudio Rodrigues Corrêa: “Cenários prospectivos e aprendizado organizacional em planejamento estratégico: estudo de casos de  grandes organizações brasileiras” (Rio: UFRJ/COPPEAD, 2011)[7]
Já sublinhamos nos textos iniciais que a ciência busca ganhar  previsibiidade e controle dos fenômenos. O planejamento – social, urbano, nacional, local, empresarial etc – parte da diagnose (uso de indicadores) para a prognose, isto é, para a imaginação de um futuro desejado. Quando ele inclui a definição das diferentes metas a cumprir (com datas, períodos, recursos diversos alocados) para se aproximar deste cenário futuro, a isto se dá o nome de “modelagem”, uma ferramenta utilizada em planejamento urbano, planejamento organizacional, planejamento ambiental e que tem seu passado nas estratégias bélicas.
Marcial e Grumbach começam seu livro mencionando as características contemporâneas marcadas pelo aumento da incerteza (o economista John K. Galbraith nos anos 80 assim denominara a nossa época, de a “era da incerteza”) e pelo aumento da informação e sua disponibilidade. Muita informação e muitas incertezas tornaram a técnica de prospectar futuro uma ferramenta necessária: como fazer com que, dentre os cenários futuros possíveis, o cenário desejado se realize?
Correa[8] destaca a questão do modelo mental do decisor: “a visão que cada decisor tem do mundo seria condicionada por seu modelo mental, formado pelo conjunto de crenças profundas, suposições e pontos cegos da percepção (Wilmore, 2001). Segundo Das (1991), a pesquisa em psicologia mostra que as pessoas variam em sua orientação para o futuro tanto quanto diferem em outros aspectos como inteligência, propensão ao risco, otimismo etc., embora, na prática, se suponha implicitamente que todos os decisores têm a mesma noção de futuro. Segundo esse autor, a orientação para o futuro dos decisores tem papel crucial no planejamento. Sem ela, o planejamento de longo prazo seria mera extrapolação do passado e do presente”.

“Cada decisor teria um limite individual para tolerância de incerteza, a partir do qual ignora o processo de aprendizagem e planejamento. Para muitos, a idéia de pensar sobre o desconhecido e tomar decisões com base em pressupostos do que pode vir a acontecer se constitui num risco elevado e, até que se prove o contrário, desnecessário (Heijden, 2004)”.

“Segundo Fahey e Randall (1998), as imagens que os gestores podem formar do futuro são limitadas apenas pela informação que se tem ou que se pode coletar; pelo entendimento que se forma de tal informação e pela imaginação para montar quadros alternativos possíveis. Não se trataria de previsões, mas de estimativas do que pode ocorrer e pressuposições sobre o que poderia acontecer”.

A cenarização implica em se definir objetivo, horizonte temporal, lugar, atores, recursos. Trabalha com variáveis qualitativas e com elementos da esfera mais ampla, tais como tecnologia disponível, a instância político-legal, os canais de opinião pública, aspectos demográficos e macroeconômicos.
Dentre as técnicas de análise, construção e avaliação de cenários, destacamos aqui o método Delphi e o método da Árvore de Pertinência/Relevância. O primeiro parte da aplicação de um questionário a um grupo de peritos, o que servirá para levantar as n variáveis temáticas a serem levadas em conta e trabalhadas por um grupo de controle encarregado da análise prospectiva. Na técnica da Árvore de Relevância/Pertinência, colocam-se no topo os objetivos a serem alcançados, nos níveis intermediários as metas e submetas necessárias para alcançá-los e no nível mais baixo as tecnologias necessárias, atribuindo-se notas a cada ação para a realização das ações do plano imediatamente superior.
Um exercício: tomando-se por alvo um cenário desejável de superávit comercial entre Brasil e China dentro de 10 anos, o que fazer para construir este futuro desejado? Na enunciação já estão mencionados o objetivo (superávit comercial), o horizonte temporal (10 anos), mas qual seria a dimensão local (apenas nacional ou deveríamos definir municípios)? Quais os atores a considerar?  Autoridades públicas das esferas locais também? E o empresariado? E quais as implicações educacionais, ambientais e outras que devem ser levadas em consideração? (Exportar tem impactos ambientais – lembremo-nos do conceito de mochila ecológica[9] e implica em se dispor de mão de obra qualificada tanto na produção quanto na comercialização.) Um aumento da pauta de exportação significa aumento de fábricas: em quais ramos industriais? Que políticas de incentivos promover? Onde – em que pontos do território nacional e em quais cidades estarão estas fábricas? Significa aumento de commodities também? E a sustentabilidade ambiental? E as políticas educacionais e tecnológicas?
Tente um outro exercício similar.
As técnicas prospectivas acima mencionadas não são para adivinhar ou especular, mas para criar futuros no presente. Como acentuado, são voltadas para o planejamento e aplicadas em urbanismo, corporações, estratégias militares. Mas vale lembrar um exemplo de seu emprego como pedagogia de ação individual e de grupos culturais alternativos. (É oportuna esta menção, para irmos além das contingências do realismo do aqui e agora e suas repetições). Neste último caso que mostraremos, a ênfase não está no planejamento, mas na criatividade e no processo coletivo de criação:

O futuro como pedagogia de ação – Lala Deheinzelin e o Movimento Crie Futuros
O futuro é fruto dos sonhos do passado e das escolhas do presente”
 Lala Deheinzelin[10]
“Olhando o passado do futuro fica claro que muito do que existe hoje foi antes sonhado: entre os anos 20 e 40 há muitas imagens de vídeo-conferência, notebooks, carros, carros e carros, cidades em escala inumana, home theater, drive trough, fast food, cirurgia por vídeo, caixa eletrônico, microondas[11], etc, etc. Hoje as imagens de futuro da grande mídia são tenebrosas, tristes, belicosas. É preciso sonhar e semear imagens e idéias de futuros desejáveis que possam inspirar inovação e orientar escolhas, sobretudo na direção da mudança de modelos que necessitamos para o mundo melhor desejado e possível”.
“Para isso foi criado em 2008 o movimento iberoamericano Crie Futuros, que desenvolve metodologias e plataformas digitais para facilitar a criação de futuros desejáveis. Uma delas é a http://criefuturos.com, uma enciclopédia multimídia de futuros desejáveis, que já tem um importante acervo de futuros criados.( plataforma digital WIKIFUTUROS)”.
“Crie Futuros tem a finalidade de motivar e mobilizar, inspirar escolhas e identificar oportunidades de inovação.Por meio de atividades presenciais e virtuais convida as pessoas, comunidades e instituições a buscarem respostas à pergunta: “Se tudo fosse possível, que futuro você desejaria?”
“Crie Futuros permite identificar pessoas e experiências que constroem futuros desejáveis no presente. A base do movimento é o conceito WIKI*: mobilização da inteligência e criatividade dos coletivos para o “design” de futuros que desejamos. Crie Futuros existe para motivar e mobilizar, orientar escolhas, inspirar inovação e identificar oportunidades”.[12]
·         “Comece respondendo à pergunta: “Se tudo fosse possível, que futuro eu desejaria?”.
·         Permita-se desejar, sem a preocupação de que suas idéias sejam viáveis ou plausíveis.
·         Descole-se do presente e pense na premissa ‘se tudo fosse possível...’
·         Não pense em criticar o presente, mas em Visualizar Soluções.
·         Crie sua visão de futuro desejável. Colabore. Adicione.

·        Crie o futuro!”

 

O marketing como pesquisa social[13]

Os estudos de mercado referem-se a produtos tangíveis e intangíveis (serviços, bens culturais, etc.) e a conceitos como praça, preço, promoção, canais longos e curtos de distribuição, intermediários, etc , teorizados a fim de se alcançar o objetivo de vender.
Os autores citam Peter Drucker e as ciências humanas e sociais:
“Para Drucker (1993), o objetivo do marketing é tornar a venda supérflua
devido ao conhecimento que se tem do cliente, de tal forma que o produto ou o serviço se adapte a ele e se venda por si só. Ao lado de estratégias e práticas comerciais que se adaptam incontáveis vezes às mudanças mundiais, Collins & Porras (1996) afirmam que as empresas de sucesso duradouro apresentam valores e objetivos fundamentais que permanecem invariáveis. Segundo Basta, Andrade, Ferreira e Seixas (2006), o estudo do comportamento do consumidor permite entendê-lo e analisar suas próprias decisões de compra ( estímulos como preço, produto, promoção, etc. ). Baseiam-se em disciplinas humanas e técnicas como sociologia, psicologia, antropologia e economia”.

O estudo do comportamento do consumidor implica também em avaliar o que  Rocha Jr. E Tófani chamam de “os agregados psicológicos”: “motivação (seja ela por necessidade de auto-realização, de estima, social, de segurança ou fisiológica), percepção (julgamento individual por sinais intrínsecos e extrínsecos à qualidades do produto), aprendizagem e pelas crenças e atitudes (convicções sobre finalidades próprias)”.

Conhecer o mercado é estratégico para as vendas. Bem sabemos porque (aumentar vendas). Mas para que?
·         Para causar demanda pelo produto
·         Para conhecer o grau de satisfação do consumidor (pós-venda, ou venda como um processo continuado)
·         Para identificar necessidades e desejos, delineando o perfil do consumidor (mercado de nichos ou segmentos em lugar de mercado de massa)
·         Para conhecer quais grupos de referência inspiram e guiam consumidores
·         Para a construção de uma rede, ou seja, de uma parceria muito homogênea entre
·         fornecedores, distribuidores, dealers (concessionárias) e clientes é o ponto chave de análise sobre o Ambiente de Marketing
·         Para prever a evolução dos concorrentes e a entrada de ovos produtos e substitutos

O ambiente de marketing é assim representado por Rocha Jr e Tófani:, apud Anderson & Vincze:


Conhecer tal ambiente, vale dizer esferas da sociedade, envolve identificar  oportunidades e ameaças, forças e fraquezas. A matriz SWOT de análise de mercado segundo Jay Barney assim as figuram:

A sociedade é formada por grupos: grupos primários (famílias, nos quais o relacionamento é total); grupos secundários e voluntários, nos quais o relacionamento é funcional (escolas, empresas, associações...).  Há ainda os grupos de referência, sem relacionamento direto, que são as pessoas ou grupos de pessoas que inspiram nossos pensamentos, atitudes e comportamentos. Quais os grupos de referência que influenciam a decisão do indivíduo de comprar algo? Este é outro ponto importante na pesquisa social com vistas a mercado (e que também enseja ser fonte de lucro extra para atletas, modelos e artistas que protagonizam peças publicitárias).


Uma vez conhecidas as necessidades, experiências, motivações, expectativas e desejos do cliente, tem-se uma massa de dados a serem transformados em informações. Isto é, a serem classificados e interpretados, para que se tenha uma pesquisa de mercado.

Segundo Rocha Jr. E Tófani, “a função da pesquisa de marketing é descobrir fatos e fazer estimativas sobre os parâmetros do universo, isto é, o conjunto finito ou infinito de indivíduos com uma característica comum.”

O cerne da pesquisa, segundo nossos autores, é encontrar e definir os segmentos de mercado, ou seja, que são e onde estão os prováveis compradores. É preciso conhecer:
·         Características dos clientes: aspectos culturais do indivíduo;
·         Atitudes do cliente: causa e efeito entre característica do cliente e atitude
·         de compra do mesmo;
·         Comportamento do cliente: hábitos de consumo, comunicação e reações
·         do mix de marketing.

As pesquisas de mercado podem ser:
·         Exploratórias: levantamento de hipóteses;
·         Descritivas: descrevem hábitos de compras e de uso;
·         Experimentais: possibilitam a utilização do serviço ou produto pelo entrevistado

Conhecido o segmento de mercado, os estrategistas de marketing criam no consumidor a imagem do seu produto, posicionam-no. Chamam a isso de “posicionamento”, “o ato de desenvolver a oferta e a imagem da organização para ocupar um lugar destacado na mente dos clientes-alvo”. A estratégia de posicionamento pode provocar mudanças no nome, preço e embalagem do produto. Dizem nossos autores: “O posicionamento psicológico do produto na cabeça dos prováveis consumidores deve ser sustentado pelo posicionamento real.”

Tipos de posicionamento:
·         por atributos: baseia-se em benefícios tangíveis ou abstratos ( sabor, frescor, bem-estar, etc.) ;
·         por aplicação: ressaltam-se as vantagens em algum uso ou aplicação (bebidas isotônicas que repõem sais ) ;
·         por usuário: apresenta um produto destinado a um grupo (xampu para bebês ) ;
·         por concorrente: vantagem explícita ou implícita frente ao concorrente (carro 1.0 mais potente do mercado );
·         por categoria de produtos:
·         por determinadas classes de produtos (barras de cereais são mais saudáveis que barras de chocolate );
·         por qualidade/preço: produto que oferece a melhor relação custo x benefício

A QUALIDADE DE VIDA E SEUS INDICADORES


A QUALIDADE DE VIDA E SEUS INDICADORES
Selene Herculano
Capítulo do livro da autora, intitulado “Em busca da boa sociedade”. Niterói: Eduff, 2006, 426p. E também publicado na Revista Ambiente e Sociedade, Campinas, UNICAMP/NEPAM, Ano I, nº 2, 1º semestre de 1998, pp 77 – 99.


            Aprofundemos uma reflexão sobre as premissas definidoras e norteadoras da busca do desenvolvimento e do bem-estar, do ponto de vista ético, ambiental, de plenitude humana, a fim de sugerir  elementos para a elaboração de um novo conjunto de indicadores que mensurem, a um só tempo e de forma integradora, o bem-estar individual, o equilíbrio ambiental e o desenvolvimento econômico. O conceito de qualidade de vida seria o fundamento deste conjunto de indicadores, aqui entendido enquanto um direito de cidadania[1] . A noção de qualidade de vida deve servir de base para o desenho não da utopia e da perfeição impossíveis, mas para um compromisso ético de uma sociedade garantidora da vida, onde as potencialidades humanas  não sejam brutalizadas nem a natureza destruída. Não é demais lembrar que os conceitos e paradigmas nas ciências sociais não apenas sintetizam análises, interpretam realidades e  balizam pesquisas e estudos, mas constituem também um mote para a ação coletiva em uma ciência não-positivista. (Ver capítulo sobre o Positivismo)

            Neste capítulo divulgo três linhas  de uma reflexão sobre qualidade de vida e sobre indicadores de sustentabilidade: 1) a primeira se iniciou em 1985, em Helsinki, com o World Institute for Development Economics Research (WIDER), das Nações Unidas, e que em 1988 promoveu uma conferência, organizada pela filósofa Martha Nussbaum e pelo economista  indiano Amartya Sen[2], sobre Qualidade de Vida, o que resultou em um livro de referência obrigatória[3]. A esta discussão sobre qualidade de vida aproximamos duas outras sobre indicadores de sustentabilidade: 2) um seminário organizado em 1994, em Londres, pela New Economics Foundation, intitulado "Accounting for Change" (Contabilidade/responsabilidade para Mudar)[4]; 3) outra, apresentada pelo World Resources Institute, em 1995, propondo uma metodologia nacional de indicadores ambientais, com vistas à tomadas de decisões em escala internacional.[5] Após resumir os pontos mais relevantes destes debates, apresentaremos alguns indicadores brasileiros e, por último, abordaremos as possibilidades do conceito de qualidade de vida como um  instrumental sociológico, um novo campo não só de estudos mas de intervenção, que estaria definido pelo estudo substantivo, descritivo e normativo, das condições de vida social, econômica e ambiental (algo que extrapola a racionalidade incompleta da noção econômica de desenvolvimento).

O que é qualidade de vida? Rejeitando a subjetividade, relatividade e obviedade da questão


            O que é exatamente qualidade de vida e qual seria o grau de prioridade desta discussão em um país onde milhões de pessoas não têm suas necessidades básicas atendidas? À primeira vista, parece uma discussão secundária, a ser feita apenas depois de cumpridas certas etapas. Mais ou menos como, por exemplo, discutir a qualidade do feijão apenas depois de garantir que haja feijão, inda que duro ou queimado. Uma outra possível reticência com o tema estaria vinculada aos seus aspectos subjetivos e suas variações culturais. Mas seria a qualidade de vida algo mesmo por demais subjetivo para que pudesse se constituir em objeto de estudo? Seria  uma questão puramente adjetiva, de grau, um valor meramente subjetivo, fora, portanto, do campo científico?  Seria um luxo (como o faz supor a publicidade em geral, sempre a vincular qualidade de vida a requinte e sofisticação, ao "detalhe que faz a diferença"), e, portanto, algo supérfluo diante de questões mais substantivas, como garantir um "patamar mínimo de dignidade e de condição humana"? Mas, qual é este patamar e como definí-lo? Como determinar as "necessidades básicas"? E quem as determina? Pressupor que o debate sobre qualidade de vida excede ao debate prioritário sobre o fim da miséria não seria mais uma discriminação que perpetuaria a desigualdade e injustiça sociais?

            As carências habitacionais e alimentares da população desvalida tendem a ser pontual e parcialmente assistidas através de programas mais ou menos modestos e paliativos, a beneficiar apenas pequena parcela de amplíssimo contingente populacional que permanece desatendido. São intervenções tidas como realistas e viáveis, que projetam casas populares de 16 m2 para grupos familiares de cerca de 10 pessoas; que visam a produção e distribuição de leite de soja de "vacas mecânicas" que um presidente brasileiro considerou "intragável"; que produzem sopas industriais para crianças pobres subnutridas, feitas com as "xepas" (sobras) do mercado hortigranjeiro. São ainda decisões governamentais que autorizam a instalação de complexos industriais altamente poluentes em nome da abertura de um mercado de trabalho que transforma pescadores em desempregados. A crítica a estas iniciativas pode ser vista como preciosismo romântico: como questionar a construção dessas "casas", quando a alternativa é o barraco de papelão sob os viadutos, ou simplesmente as ruas? Não será superficialismo discutir o leite da vaca mecânica  e a xepa para as crianças pobres, quando a alternativa parece ser a de deixá-las à míngua? Não será romantismo defender florestas e águas puras, quando a alternativa é a de ter uma população desempregada e miserável? Críticas assim são, todavia, importantes, pois abrem espaço para perguntas cabais: por que, exatamente, os governos não podem  trabalhar com a real possibilidade de prover todas as crianças de leite natural, carnes e frutas frescas, prover os sem-teto de habitações onde realmente todos caibam e a população, a um só tempo, possa ter emprego racional e ambiente ameno e equilibrado?
            Mencionamos até aqui a primeira relutância em discutir e examinar o que é qualidade de vida, e que se baseia  em entender que qualidade de vida é algo adjetivo e relativo. Há outras críticas ao tema: a questão do entendimento sobre o que é qualidade de vida também pode ser vista como desnecessária, não por ser desimportante ou  pouco palpável, mas pela sua obviedade. Algo que ninguém saberia definir, mas que, parodiando a referência da poeta Cecília Meirelles à liberdade, todos entendem o que é. Talvez por isto a ênfase dos estudos sobre qualidade de vida enfoque predominantemente a sua mensuração, ficando embutido na escolha sobre o que mensurar os pressupostos do que se entende venha a compor a qualidade de vida.
            A avaliação/mensuração sobre a qualidade de vida de uma população vem sendo proposta de duas formas:

1) em primeiro lugar,examinando-se os recursos disponíveis, a capacidade efetiva de um grupo social para satisfazer suas necessidades. Por exemplo, podemos analisar as condições de saúde pela quantidade de leitos hospitalares e número de médicos disponíveis, ou o grau de instrução pelo número de escolas, jornais publicados, níveis de escolaridade atingidos, etc; podemos avaliar as condições ambientais pela potabilidade da água, coliformes e partículas de substâncias nocivas em suspensão, pela emissão aérea de poluentes, pela quantidade de domicílios conectados às redes de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, pela dimensão per capita de áreas verdes e espaços abertos urbanos disponíveis para amenizar a paisagem cinza do concreto e asfalto urbanos.. 

2) Uma segunda forma de estimar a qualidade de vida é avaliar as necessidades, através dos graus de satisfação e dos patamares desejados. Podemos, assim, tentar mensurar a qualidade de vida pela distância entre o que se deseja e o que se alcança, ou seja, pelos estágios de consciência a respeito dos graus de prazer ou felicidade experimentados (Scanlon, in Nusbaum & Sen, 1995: 185); ou a partir de um julgamento que se propõe substantivo, feito pelo próprio pesquisador, sobre o que tornaria a vida melhor. Em todos eles, devemos levar em conta que a definição do que é qualidade de vida variará em razão das diferenças individuais, sociais e culturais e pela acessibilidade às inovações tecnológicas. Dado ao efeito-demonstração, a diferença entre o que temos e o que queremos tende a existir sempre. A história registra exemplos de governos e nações que buscaram escapar deste efeito fechando fronteiras, impondo e contendo padrões culturais, em fórmulas ditatoriais que se revelaram causadora de infelicidades pela desconsideração dos direitos individuais e pela imposição de limites e de padrões às individualidades. Quererá isto significar que o tema é impossível?

            No plano individual, a avaliação da qualidade de vida pela distância relativa entre o que se deseja e o que se alcança pode confundi-la, por um lado, com resignação (no caso da pouca distância entre o que se tem e o que se quer). Não vamos entrar aqui na discussão se os anelos do tipo do personagem de Orestes Barbosa na canção Chão de Estrelas (querer da vida apenas a cabrocha, o luar e um violão, em um barraco coberto por zinco furado onde se repartem trapos coloridos) são marcas de uma sabedoria zen e despojada ou se seria um hino de resignação à pobreza. No extremo oposto, a percepção queixosa sobre a  baixa qualidade da própria vida poderia estar relacionada a um consumismo desenfreado (tal foi a hipótese de Marcuse nos anos 60, no contexto europeu, para quem o consumismo explicaria porque nos sujeitamos a permanecer na infelicidade da exploração, submetendo-nos a esforços de trabalho dispensáveis em um mundo que já teria condições tecnológicas para nos fazer viver com mais constância as alegrias do não-trabalho em uma praia limpa, nos dias ensolarados de verão). Ou seja, escravos do consumo, estaríamos condenados a querer mais, a amealhar mais e, portanto, a não gozar a vida pela vida. Este enfoque tende a enxergar na publicidade aspectos simplesmente manipulatórios, levando-nos a querer o que normalmente não quereríamos.
            Marcuse,  e os ambientalistas que influenciou,  mostraram proximidade com o pensamento clássico de Durkheim no que tange à diferença entre o prazer e a felicidade e com a sua apologia à moderação. Dizia Durkheim[6] ser a felicidade um estado geral e constante, enquanto o prazer é uma espécie de crise, que dura um momento e morre. O que definiria a felicidade seriam as disposições permanentes, a saúde psíquica e moral no  seu conjunto. Sendo a felicidade uma constante, ela não aumentaria com o progresso, pois, para Durkheim, haveria uma intensidade normal de todas as nossas necessidades intelectuais, morais, físicas, que não poderia ser ultrapassada: tudo que fosse além desta medida ou nos deixaria indiferentes ou nos faria sofrer. A felicidade estaria estreitamente vinculada à moderação, a um desenvolvimento moderado, sem acumular indefinidamente estímulos. O autor criticava o utilitarismo, que supunha que a felicidade crescesse com o progresso, e o psicologismo, que imputava à busca da felicidade as causas da realização do progresso humano.
            É difícil, se desejável fosse, arbitrar o que seria "normal" desejar. O que temos são exemplos, trazidos pelas sociais-democracias, de definição de patamares mínimos de bem-estar a serem coletivamente assegurados, não de patamares máximos.  Foram as sociais-democracias, incorporando às suas políticas as reivindicações do movimento trabalhista, em um contexto de pluralidade, que institucionalizaram a busca do bem-estar como agenda prioritária governamental. Segundo Furtado, o Estado de bem-estar social (welfare state) foi "a maior experiência de solidariedade que já se inventou, a grande vitória e a nobreza da democracia moderna. A sociedade assume o destino das pessoas, ninguém é abandonado."[7]. (Ver capítulo sobre a Sociedade Generosa e o Estado do Bem-Estar).
            O Sistema de Bem-Estar da Escandinávia definiu princípios subjacentes para seus indicadores sociais, baseados em 03 verbos considerados básicos à vida humana - ter, amar, ser [8]
Ter, refere-se às condições materiais necessárias a uma sobrevivência livre da miséria: recursos econômicos (medidos por renda e riqueza); condições de habitação (medidas pelo espaço disponível e conforto doméstico); emprego (medido pela ausência de desemprego); condições físicas de trabalho (avaliado pelos ruídos e temperaturas nos postos de trabalho, rotina física, stress); saúde (sintomas de dores e doenças, acessibilidade de atendimento médico; educação (medida por anos de escolaridade).

Amar diz respeito à necessidade de se relacionar a outras pessoas e formar identidades sociais:  união e contatos com a comunidade local; ligação com a família nuclear e parentes; padrões ativos de amizade; união e contatos com companheiros em associações e organizações; relações com companheiros de trabalho.

Ser refere-se à necessidade de integração com a sociedade e de harmonização com a natureza, a serem mensuradas com base nos seguintes princípios: em que medida uma pessoa participa nas decisões e atividades coletivas que influenciam sua vida; atividades políticas; oportunidades de tempo de lazer; oportunidades para uma vida profissional significativa; oportunidade de estar em contato com a natureza, em atividades lúdicas ou contemplativas.

            No conjunto das condições materiais vinculados a ter, Allardt propôs a introdução dos aspectos ambientais, que seriam mensurados pelos seguintes indicadores: grau de partículas de enxôfre no ar; acidificação (PH) do solo, das águas correntes e dos lençóis freáticos; concentração de ácido nítrico no ar, no mar e nas águas; excesso de algas nos mares e lagos; depósito de metais pesados no solo e nas águas; concentração de mercúrio em peixes etc.









            Os indicadores mencionados poderiam ser medidos também através de aspectos subjetivos (1995: 93):


Indicadores objetivos
Indicadores subjetivos

Ter - condições materiais

Medidas objetivas do nível das condições ambientais e de vida
Sentimentos subjetivos de satisfação/insatisfação com tais condições

Amar - necessidades sociais
Medidas objetivas de relações interpessoais
Felicidade-infelicidade - sentimentos subjetivos sobre as relações sociais

Ser - necessidades de crescimento pessoal
Medidas objetivas da relação das pessoas com a sociedade e com a natureza
Sentimentos subjetivos de alienação/crescimento pessoal


            Erikson (in Nussbaum & Sen, 1995: 67) estudou três surveys feitos na Suécia, respectivamente em 1968, em 1974 e em 1981, sobre recursos efetivos de qualidade de vida. Para o primeiro estudo, 6.000 pessoas entre 15 e 75 anos foram entrevistadas . Em 1974 e em 1981, os sobreviventes de menos de 76 anos deste grupo, mais uma população jovem e imigrada também o foram. Buscava-se saber quais as mudanças ocorridas, as diferenças em nível de vida entre os diferentes grupos (homens e mulheres, classes sociais, idade, regiões) com o passar dos anos. O survey enfocava 9 pontos, mensurados de maneira específica:


1- Saúde e acesso a cuidados médicos
Capacidade de andar 100 metros, sintomas de doenças, acessibilidade a médicos e enfermeiras
2 - Emprego e condições de trabalho
Experiências de desemprego, demandas físicas, dispendidas, possibilidade de deixar o posto de trabalho durante a jornada
3 - Recursos econômicos
Renda e riqueza, propriedade, capacidade de cobrir despesas inesperadas de até um mil dólares em uma semana
4 - Educação 
Anos de escolaridade, nível mais alto de escolaridade alcançado
5 - Integração familiar e social
Estado civil, contatos com amigos e parentes
6 - Habitação
Número de pessoas por cômodo, amenidades (conforto doméstico)
7 - Segurança de vida e de propriedade
Exposição à violência e a roubo
8 - Recreação e cultura
Tempo de lazer, viagens de férias
9 - Recursos políticos
Voto em  eleições, filiação a sindicatos e partidos políticos, capacidade de apresentar demandas e reclamações


            O objetivo era examinar  os graus de desigualdade social existentes entre diferentes segmentos, a fim de criar políticas promotoras de bem-estar para aqueles identificados como mais vulneráveis.

            Amartya Sen[9] define qualidade de vida a partir de dois conceitos: capacitação (capability), que representa as possíveis combinações de coisas que uma pessoa está apta a fazer ou ser, e  funcionalidades (functionings[10]), que representa partes do estado de uma pessoa - as várias coisas que ela faz ou é. Assim, a capacitação reflete, em cada pessoa, as combinações alternativas de funcionalidades que esta pessoa pode conseguir. Desta forma, a qualidade de vida pode ser avaliada em termos da capacitação para alcançar funcionalidades, tais como as funcionalidades elementares (nutrir-se adequadamente, ter saúde, abrigo etc.) e as que envolvem auto-respeito e integração social (tomar parte da vida da comunidade). A capacitação de uma pessoa dependerá de um conjunto de fatores, incluindo-se aí características de personalidade mas, principalmente, de arranjos sociais; a intenção de Sen, com o uso do termo capacitação, é a de enfatizar a análise política e social das privações. Por exemplo, se uma pessoa pode viver livre da ameaça da malária, isso significa que ela tem esta capacitação para alcançar tal vida, graças à ação de outros, tais como a dos pesquisadores de medicamentos, dos epidemiologistas, da saúde pública etc. Dito de outra forma, para Sen a capacitação não se mede pelas realizações efetivas de uma pessoa, mas pelo conjunto de oportunidades reais que ela tem em seu favor. A qualidade de vida não deve, portanto, ser entendida como um mero conjunto de bens, confortos e serviços, mas, através destes, das oportunidades efetivas das quais as pessoas dispõem para ser. Oportunidades dadas pelas realizações coletivas, passadas e presentes.
            Observe-se que nas considerações dos autores citados - Allardt, Erikson, Sen - e nas premissas dos indicadores sociais escandinavos, o bem-estar tem como ingredientes básicos:
1.      a questão política da possibilidade de influenciar nas decisões que dizem respeito à coletividade e de participar na vida comunitária;
2.      ser beneficiado com as ações passadas e presentes da coletividade.



Mensuração e interpretação de indicadores de qualidade de vida:

            Em frase frequentemente citada, imputada a Galileu, só seria objeto de ciência o que pudesse ser medido. Para a filósofa Martha Nussbaum, ao contrário, mensurar, no caso das ciências sociais, seria pseudo-ciência. Diz-nos ela que as ciências sociais tem duas alternativas igualmente impalatáveis, intragáveis: 1- a que vê a ciência social como uma ciência natural e que reduz o qualitativo ao quantitativo; 2 - a que, procurando restaurar as interpretações, descamba para o relativismo,  desistindo da razão prática. A proposta de Nussbaum é que podemos sair do pseudocientifismo desengajado, sem abandonar entretanto, o argumento racional, enfocando o pedaço e não o todo, as particularidades das situações históricas das pessoas, o biográfico e não o abstrato, tentando ser comparativo e não absoluto. E também não discriminando paixões e aspectos subjetivos, pois as paixões correspondem a um sistema de avaliação das pessoas, com suas crenças sobre o que tem e o que não tem valor.
            Quereria isso dizer que não devemos perder nosso tempo com indicadores, que eles sempre variarão ao sabor das intenções,  sendo, portanto, pouco confiáveis?
            Cobb[11] , ao contrário, insiste em que precisamos criar indicadores e  índices que ajudem a construir um futuro mais desejável e seguro. Precisamos mensurar, sim, e fazê-lo principalmente em termos monetários. "O que não é contado, não conta, não é percebido", escreveram MacGillivray e Zadek[12], citando um velho adágio. Criar indicadores deve ser visto como parte de um esforço para redefinir poder, desafiando a forma pela qual o poder é usualmente retratado e arquitetando políticas operacionalizáveis, baseadas em concepções alternativas de poder. Para Cobb, os indicadores alternativos, contudo, padecem da fragilidade de não estarem expressos em termos monetários, como o PIB está.
            Cifras (dados primários), estatísticas e porcentagens (dados analisados), os indicadores deles derivados e sua expressão em índices são muito úteis, face ao seu poder de concisão, condensando o quadro de uma situação em um período específico. Formam a chamada "pirâmide informacional" (Hammond et al, 1995). Os indicadores facilitam a tomada de decisão, pois, pelos processos de quantificação e simplificação da informação, informam/formam a opinião pública, teóricamente de importância vital em sistemas democráticos.
            Os indicadores, além de condensarem informações para as tomadas de decisões referentes às escolhas políticas, têm também a função de espelhar a forma  e os rumos que toma essa coisa gigantesca e misteriosa que é o coletivo. O cidadão comum é levado a perceber a sociedade na qual está mergulhado, não apenas através da sua experiência imediata, mas através das sinalizações e interpretações daqueles que têm a tarefa de perscrutar o cenário social no seu conjunto e nos seus rumos e horizontes. Os cientistas sociais e os jornalistas são, assim, olheiros e intérpretes que produzem, interpretam e divulgam os indicadores. A objetividade e exatidão destes dados, entretanto, estarão sujeitas a diferentes interpretações e mesmo a distorções e manipulações, intencionais ou não. O jornalista político Villas-Bôas Corrêa, por exemplo, desconfiou do Relatório de Desenvolvimento do Banco Mundial, concluído em junho/95, que colocava Botsuana no penúltimo lugar - acima do Brasil, que "fechava a lista da vergonha dos países de maior desigualdade social e de renda":

..."a ONU contou a dedo, com impressionante precisão, que no Brasil agonizavam, nos limites extremos da privação alimentar, 31 milhões, 679 mil e 95 pessoas. A bisbilhotice competente desmontou a trapalhada. E reduziu a estimativa para 10 milhões de famintos. Se não aliviou nosso vexame, dimensionou o desafio à sensibilidade do governo em tamanho assustador mas, em todo o caso, solucionável a médio prazo (...) Com 31 milhões não tinha jeito. As crianças de rua, na estatística da indignação, chegavam à casa do milhão. Na verdade, deve ficar por 10 mil em todo o país, problema no nível razoável de solução municipal (...) Francamente, não é preciso exagerar nossa miséria para tocar o sino do alarme (...) Aqui para nós: alguém acredita mesmo que o Brasil fique abaixo de Botsuana em qualquer estatística que se preze?"  (Jornal do Brasil, 11/8/95).

            O jornalista se referia aos seguintes dados: no Brasil os 40% mais pobres detinham 7,0% das rendas, enquanto que os 10% mais ricos detinham 50,6%. Relacionando-se estas duas cifras, chegava-se a um indicador de 7,2, pior que o de Botsuana, de 5,5. O Brasil aparecia, assim, como o pior país em distribuição de renda, enquanto que os melhores, cujo indicador era 1.0, eram a Holanda, a Bélgica, a Hungria e o Japão. Os Estados Unidos, nosso modelo tradicional, tinham  seus 40% mais pobres detendo 17,2% das rendas e os 10% mais ricos 23,3%, o que lhes colocava a cifra de 1,4 como indicador[13].
            O estudo "O Mapa da Fome: subsídios à formulação de uma política de segurança alimentar" (Min. do Planejamento-IPEA, 1993), realizado com base em dados do IBGE/PNAD de 1990, constatara que o país tinha, naquele ano, 31.367.096 indigentes, assim definidos como as pessoas que têm renda inferior ao preço de uma cesta básica, orçada em 65 dólares. Destas, 54,53% estavam nos estados do Nordeste e 38.09% nas regiões sul e sudeste, as mais desenvolvidas e populosas do país.
            A quantidade verossímil de brasileiros indigentes tornou-se um ponto polêmico e outro estudo, também do IPEA, reduziu esse montante para 16,6 milhões, ou 12 % da população brasileira de 1990[14].
            O estudo do mapa da fome no Brasil tinha um propósito digno e louvável, que era o de provocar a indignação e a ação imediata. Betinho (o sociólogo Herbert de Souza, dirigente da ONG Ibase) deu a ele o destaque político necessário, invocando tais resultados na sua retórica de constituição do Movimento da Cidadania contra a Fome e a Miséria, que inspirou e buscou incentivar, assim jogando o jogo dos indicadores ao qual  MacGillivray e Zadek se referiam. Parte da melhor imprensa brasileira  também vem desempenhando o mesmo papel neste jogo, que consiste em possibilitar à sociedade brasileira enxergar-se a si mesma: "o real problema do Brasil", escrevia a Revista Veja em 19/12/90, "chama-se miséria e envolve 60 milhões de cidadãos que não têm casa, nem escola para colocar os filhos, nem esperança. É uma população maior que a de países como a França e a Coréia do Sul e equivale a duas vezes a Argentina". À mesma época, a revista publicava a matéria intitulada "Os anos da pobreza", relatando levantamento inédito de Juarez Brandão Lopes, da Unicamp, e de Andréa Gottschalk, da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados - Seade - no qual se mostrava que, quando a década de 1980 se iniciou, a Grande São Paulo tinha cerca de 3,6 milhões de pobres e 1,7 milhões de miseráveis, segundo o IBGE. Quando esta década terminou, os seus pobres haviam aumentado para 4,7 milhões e os miseráveis para3 milhões.[15] .
            O índice de GINI[16] da distribuição do rendimento mensal dos brasileiros de 10 anos ou mais de idade era, para dados de 1993, de 0,603.[17] E por aí vem se mantendo. (Ver capítulo sobre Desigualdades Sociais...) Outros indicadores são usados para dar os contornos da nossa desigualdade e das condições de vida do nosso povo, em comparação com as de outros países: segundo dados de 1990, do Dieese e da OIT, a jornada de trabalho no Brasil era de 44 horas semanais, a 2,79 dólares a hora, enquanto que na Alemanha era de 39,5 horas a um custo/hora de 21,30 dólares e na Coréia 49,8 horas a 4,16 dólares. Outros estudos estimam que existem 60 mil pessoas no país ainda submetidas a um sistema clandestino de escravidão (Mato Grosso do Sul, sul do Pará, sudoeste do Maranhão, Alagoas, Bahia e Sergipe.[18].
            No contrafluxo  destes indicadores, o governo atual ofereceu outros dados e outras interpretações: o sociólogo Fernando Henrique Cardoso e Presidente da República de 1994 a 2002 , ao fazer o balanço de 30 meses de Plano Real, comparou-o a uma "revolução silenciosa", através da qual estaria se construindo "a felicidade do povo brasileiro":

            "A exclusão social começa a dar lugar à inclusão social. Treze milhões de brasileiros já deixaram a linha da pobreza. As classes D e E diminuíram 17% e as classes A e B cresceram 21%. O rendimento dos 10% mais pobres da população dobrou. (...) Carne bovina, ovos, congelados, iogurte e conservas passaram a frequentar mais a mesa dos brasileiros. As classes D e E já são responsáveis por 30% do consumo de produtos como biscoitos, iogurte e macarrão instantâneo. Aumentou também o número de residências com geladeira, TV em cores, freezer, produtos eletrônicos e eletrodomésticos. Os mais pobres começam também a ter acesso a aparelhos de CD e TV a cabo. (...) As vendas de cimento cresceram 12% em 1995 e 21,5% no primeiro semestre deste ano. Estudos indicam que mais da metade da produção do ano passado foi utilizada por pessoas que construíram sozinhas suas casas. (...) O Brasil registrou em maio último o maior consumo de gasolina de sua história. Cresceu também o uso de energia elétrica. (...) Na Previdência Social, o aumento real médio dos benefícios foi de 39% entre 94 e 96. Só neste ano, a Previdência incorporou 710 mil novos beneficiários. Ela atende também, agora, 280 mil deficientes, 40 mil idosos e 340 mil crianças e adolescentes. Isso é dar renda a quem não tinha renda até agora. (...) Meu compromisso de governo é - para usar a expressão da filosofia da Grécia Antiga - com a construção da felicidade do povo brasileiro. (...)[19]
            Cardoso, como vemos, mensurava a qualidade de vida pelo padrão de consumo, incluindo na avaliação da sua melhora também o aumento do consumo de gasolina (o que é duvidoso, pois este  aumento pode significar também  o incremento dos  engarrafamentos estressantes, bem como do aumento da poluição urbana, etc., em um país onde a boa qualidade do transporte deveria ser mensurada através da qualidade dos serviços da rede de coletivos disponíveis, principalmente da rede sobre trilhos). Para Cardoso, a pobreza vem diminuindo e, em consequência, os níveis de estratificação social também se modificam.

            Pesquisas dos economistas Ricardo Paes de Barros, Rosane Mendonça e Marcelo Néri, do IPEA,  questionam  a relação de sinonímia que Cardoso atribui à pobreza e desigualdade: "pobreza é uma coisa e desigualdade é outra, e a desigualdade não caiu depois do Real".  Para eles, a desigualdade brasileira é estrutural e uma de suas causas é a desigualdade educacional (um brasileiro com nível superior de educação ganha, em média, quinze vezes mais que um analfabeto). Se houve aumento do bem-estar dos mais pobres no Brasil depois do Plano Real através do aumento do consumo, no que diz respeito à renda do trabalho os ganhos foram poucos, e atribuídos aos aumentos do salário mínimo e à contenção da inflação[20].
            Outro exemplo do uso tático-estratégico da pirâmide informacional remete à comparação ao nível mundial, para insistir na contradição centro/periferia:

"....Segundo as estatísticas do Banco Mundial, a população de todo o mundo é estimada em 4 bilhões 736,2 milhões de habitantes (dados de 1988). Destes, 15,86% vivem nos países da OCDE, o clube dos países imperialistas. Por outro lado, a produção de bens e serviços foi avaliada em 14,018 trilhões de dólares. Deste total, os países ricos da OCDE se apropriam de 13,603 trilhões de dólares, sobrando para o resto do mundo, com quase 4 bilhões de pessoas, somente 3,415 mil bilhões de dólares ao ano. Em resumo, 15,86% da população do planeta se apropria de 79,93% da produção mundial, enquanto que a parte dos países pobres, 84,14% percebe somente 20,07 desta produção... Na população entre 20 e 24 anos de idade, 30% na OCDE está matriculada em cursos superiores. No Brasil 11%... e nos países mais pobres cai para 3%. Na OCDE, somam-se 450 habitantes para cada médico... no resto do mundo temos a média de 7.891,3 habitantes por médico...O ïndice de mortalidade infantil na OCDE é de 24 óbitos para cada mil nascidos vivos. Já na América Latina 95 em cada mil nascidos vivos morrem antes de completar 5 anos de idade...Enquanto que na OCDE os 10% mais ricos se apropriam de cerca de 24% da renda nacional, no Brasil os 10% mais ricos se apropriam de 46,2% da renda do país (dados de 1985). (Agenor Silva Jr. Revista Princípios n. 20, órgão do PC do B, 1991)

Propondo novos indicadores:

            Como vimos, os indicadores constituem informações condensadas, simplificadas, quantificadas, que facilitam a comunicação, comparações e o processo de decisão. Os indicadores sociais propõem-se, ainda, a ser um incentivo para a mobilização da sociedade afim de pressionar os que tomam as decisões.
            Historicamente, os indicadores começaram a ser usados em escala mundial em 1947, quando se disseminou a medição do Produto Interno Bruto (GNP - "Gross Domestic Product") como indicador de progresso econômico.  Em meados da década de 60, os indicadores sociais foram inaugurados, substituindo a mera ênfase no crescimento econômico por novos conceitos: "necessidades básicas", "self-reliance", "crescimento com equidade", "grass-root development", "participatory development", "empowerment". Alguns deles até de difícil tradução entre nós, tão distante é a nossa realidade destas orientações, tal como "self-reliance" (autonomia), "grass-root" (comunidades e associações de base, locais) e "empowerment" (fortalecimento das associações de base, dos movimentos sociais).
            Quem estuda a temática do desenvolvimento já conhece bem o debate sobre a ineficácia dos indicadores tradicionalmente usados na tentativa de mensurá-lo, sendo a maior crítica a que aponta a ineficácia de se quantificar o PIB per capita sem se ter o pulso da real distribuição de renda. A própria metodologia de mensuração do PIB é inadequada, pois pode contabilizar como atividades econômicas ações na verdade destrutivas, como desmatamentos e demolições e até mesmo imorais, como as empresas de prostituição e de tráfico de crianças. Em termos internacionais, o PIB per capita também pouco indica: segundo Sen, Índia e China, por exemplo, são países próximos em termos de PIB per capita, mas muito diferentes em termos de capacitação de sobrevivência e de educação.
            Em 1990 a ONU, dando-se conta do caráter restritivo do PIB, deu início a medição de um desenvolvimento com rosto humano, através do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano/HDI), proposto por Amartya Sem. O IDH sintetiza quatro indicadores (expectativa de vida, taxa de alfabetização, anos de escolaridade e PIB/capita) e dispõe os cerca de 160 países em um ranking. Tratava-se de se ater a aspectos de fácil mensuração e que refletiriam a efetiva boa conseqüência do desenvolvimento na vida das pessoas. Seus pressupostos são óbvios: quanto maior a instrução, maior a informação e a predisposição para a ação positiva; quanto mais universalmente distribuída a educação, menos concentrada será a renda; quanto mais assistida uma pessoa - em nutrição, saúde, saúde pública, salubridade no trabalho, segurança contra formas de violência - mais longa sua expectativa de vida.
            De acordo com os relatórios anuais de IDH da ONU, o Brasil teria as seguintes posições em uma listagem de 160 países, encabeçada pelo Canadá e Japão - com um índice próximo a 1.0 -  e que tem a Guiné e a Nigéria como "lanterninhas", com índices em torno de 0,22:


            Posição do Brasil no ranking mundial de IDH
Ano
Índice de IDH
Posição no ranking de IDH
Posição no ranking de PIB/capita
1990
0,739
62o
65.o
1992
0,804
63o
64o
1993
0,796
58o
58o
1994
0,756
63o
52o
Fonte: Relatórios de Desenvolvimento Humano, ONU




Os Indicadores Ambientais


            Foi ao final da década de 80 que os indicadores ambientais começaram a ser estudados, em  trabalhos pioneiros do Canadá e da Holanda, seguidos pelas propostas da OCDE. Em 1993, órgãos da ONU formaram um grupo de trabalho sobre a questão; em 1994 e 1995 conferências e seminários se sucederam, organizados pelo Banco Mundial, pelo Programa da ONU para o Meio Ambiente, pelo Comitê Científico sobre Problemas Ambientais (SCOPE) e pela Comissão da ONU para o Desenvolvimento Sustentável (UNCSD)[21]. Como se pode perceber, trata-se de uma temática sobremodo recente.
            Os indicadores ambientais são modelos que descrevem as formas de interação das atividades humanas com o meio ambiente, entendido este como:

1 - fonte de recursos: minerais, energia, alimentos, matérias primas em geral;
2- depósito de rejeitos: lixo industrial e doméstico; efluentes líquidos e gasosos; lixo tóxico;
3- suporte da vida humana e da biodiversidade.

            Os indicadores ambientais podem se referir: 1) ao estado f'ísico ou biológico do mundo natural (indicadores de estado); 2) às pressões das atividades humanas que causam modificações deste estados (indicadores de pressão); e 3) indicadores das medidas da política adotada como resposta a estas pressões, na busca da melhora do meio ambiente ou da mitigação da degradação (indicadores de resposta). O quadro abaixo os sistematiza, em relação aos problemas definidos como ambientais:

MATRIZ DE INDICADORES AMBIENTAIS[22]
Problemas
Ind. de Pressão
Ind. de Estado
Ind. de Respostas
Alterações climáticas
Emissões de GHG
Concentrações
Medidas ambientais; intensidade de energia
Buraco da camada de ozônio
Produção; emissões de halocarbonos
Concentrações de clorinos; 03
Protocolos assinados; recuperação de CFC; contribuição para um fundo
Eutrofização
Emissões de N e P na água e solo
Concentrações de N, P BOD
Tratamento;investimentos e custos

Acidificação
Emissões de SOx, NOx, NH3
Depósitos; concentrações
Investimentos; assinaturas de acordos
Contaminação tóxica
Emissões de metais pesados, POC
Concentrações de metais pesados, POC
Recuperação de rejeitos; investimentos/custos
Qualidade de vida urbana
Emissões de VOC, NOx,SOx
Concentrações de VOC, NOx, SOx
Gastos; política de transporte
Biodiversidade
Fragmentação da terra; conversão de uso
Abundância de espécies comparada à área virgem
Proteção de áreas
Lixo
Geração de lixo doméstico, industrial e agrícola
Qualidade do solo e das águas subterrâneas
Taxa de coleta; reciclagem - investimentos e custos
Recursos hídricos
Intensidade de demanda/uso residencial, industrial e agrícola
Razão oferta/demanda; qualidade
Gastos; preço da água;políticas de racionalização do consumo
Recursos florestais
Intensidade do uso
Áreas degradadas; razão entre o uso e o crescimento sustentável
Áreas de proteção; manejo
Recursos pesqueiros
Pesca
Estoques sustentáveis
Política de quotas
Degradação do solo
Alterações de uso
Perda da camada superficial de proteção
Reabilitação/proteção
Zonas costeiras e oceanos
Emissões; derramamentos de óleo; depósitos
Qualidade da água
Gestão e manejo das zonas costeiras; proteção aos oceanos
Fonte: OCDE e PNUMA

(As alterações climáticas são atribuídas à emissão de gases - dióxido de carbono, metano, óxido nítrico, clrofuluorcarbonos e halogênios - que causam o aquecimento da atmosfera e o efeito estufa. As políticas atuais objetivam reduzir suas emissões pela metade até o ano 2020;  o buraco da camada de ozônio seria causado por substâncias lançadas à atmosfera e que catalizam a sua decomposição, aumentando, em consequência, a radiação de raios ultravioletas; a acidificação do solo,plantas, edifícios, etc é imputada ao dióxido de enxôfre, óxidos de nitrogênio e amônia, na forma de chuvas ácidas e rejeitos líquidos; a eutrofização ocorre por um desequilíbrio ecológico causada pelo excesso de nutrientes, tais como fosfatos e nitrogênio, na água e solo, que se manifesta por excesso de algas e consequentre queda no suprimento de oxigênio, bem como no depósito de nitrato nas águas subterrâneas). É de se salientar, no quadro acima, a ausência surpreendente de menção à questão da energia nuclear e seus rejeitos, ativos por milênios.
            Para a IUCN/UNEP/WWF [23], a sociedade ecológicamente sustentável é aquela que:

1. conserva a biodiversidade e os sistemas de suporte à vida;
2. assegura que o uso dos recursos renováveis seja sustentável e que a degradação dos recursos não-renováveis seja minimizada;
3. se mantém dentro dos limites da capacidade de suporte dos ecossistemas.

            O primeiro ponto, o da conservação da biodiversidade, seria atendido através de 4 políticas: a) políticas de prevenção, mensurando-se emissões tóxicas, a concentração de elementos tóxicos nas águas, os acidentes industriais e suas vítimas, o tipo de tratamento de lixo; b) políticas de restauração e de manutenção da integridade dos ecossistemas, mensurando-se as porcentagens de terras naturais, modificadas, cultivadas, construídas, degradadas,  e as porcentagens ocupadas por florestas nativas; c) políticas de desenvolvimento de um sistema de áreas protegidas, mensurando-se a porcentagem de áreas legalmente protegidas; d) políticas de restauração e de manutenção das espécies e dos estoques genéticos, mensurando-se número de espécies ameaçadas de extinção, variedades tradicionais, etc.
            Quanto ao segundo ponto, do uso sustentável dos recursos, a proposta da IUCN et al seria atendê-lo a partir da "avaliação da importância de cada setor para a renda e o emprego e de dois tipos básicos de dados a respeito da dimensão do estoque atual de recursos e do seu fluxo"; a avaliação da compatibilidade e conflito com a sustentabilidade de outros setores - sua sustentabilidade externa -  também é destacada.  Fica omisso, porém, o que fazer exatamente com um setor de produção inequivocamente degradador, porém economicamente vital para a renda e o emprego.

            Um dos indicadores mais cogitados é aquele que mensura os custos de conservação pagos pelas indústrias e governos (o princípio do poluidor/pagador, por exemplo, a ênfase nas inovações tecnológicas dos filtros e de equipamentos e métodos de neutralização de efluentes, etc.). Outro destes indicadores  diria respeito à participação efetiva das comunidades e dos grupos de interesse nas decisões que os afetam. Até que ponto estes têm uma fala decisiva sobre o planejamento e a gestão tanto da conservação quanto do desenvolvimento?
            O terceiro e último ponto, o de manter-se dentro dos limites da capacidade de suporte, seria aferido através do consumo per capita de alimentos, água, madeira, minerais, energia, da geração de lixo municipal e industrial, e de lixo nuclear, calculado per capita e em relação ao PIB, das taxas de fertilidade e da densidade populacional.
            Quanto a este último aspecto, faltou a IUCN/UNEP/WWF perceberem que a questão dos limites da capacidade de suporte vem sendo tangenciada na medida em que se ampliam espacialmente as redes de consumo e de produção, capturando-se novas áreas. Assim, a exaustão de uma localidade ou ecossistema se compensa e as necessidades da sua população ficam asseguradas ao alargar-se sua área de captação de bens (um primeiro mundo europeu sem florestas e que consome madeira asiática e brasileira, ou um sudeste brasileiro que consome madeira amazônica, por exemplo). Contudo, se a comunidade local não tem tal poder tentacular de garantir seus bens de consumo, ela tende a esvaziar-se e sua população irá pressionar áreas economicamente mais dotadas. Daí se conclui que a pressão sobre um ecossistema não se resume à população que o habita, não devendo pois, ser mensurada a partir apenas desta população. Face ao exposto, a capacidade de suporte  precisa ter uma mensuração referida a cada ecossistema, sim, porém não limitada ao consumo per capita local.
            Dentre os três pontos acima, definidores de sustentabilidade, as políticas ambientais dos governos e de outros agentes da sociedade tendem a se concentrar no primeiro, de defesa da biodiversidade. As iniciativas quanto à racionalidade ambiental no uso dos recursos naturais e quanto ao limite da capacidade de suporte, são tímidas não apenas na execução, mas até nas suas proposições.

Propostas

           
            Se há os que advogam que a obsessão pela mensuração é um equívoco, que corremos o risco de comparar coisas diferentes, de escamotear especificidades, de simplificar o que por natureza é complexo, a ponto de mascarar realidades, de cair no canto ambiental entoado pelo dito primeiro mundo com o suposto objetivo de nos manipular e impedir nosso crescimento, por outro lado, não participar deste jogo pode significar a marginalização de interesses vitais no processo decisório. ("Failure to play the indicators game can mean the marginalisation of vital interests in the decision-making process." Alex MacGillivray & Simon Zadek, 1994:3)
            Segundo Cobb, quando falamos ao público acerca de indicadores de sustentabilidade  (entendida como desenvolvimento econômico e social com defesa e preservação ambiental), nos defrontamos com um problema de imagem, algo tido como um sonho impossível de idealistas e um objeto de ridículo para os mais realistas, ao passo que a economia é vista como produtividade e produtividade é poder. Associado aos indicadores de PIB sacralizados, há uma imagem de poder. Por isso, enfatiza Cobb, não bastaria simplesmente planejar, projetar novos indicadores para medir sustentabilidade, mas desenvolver uma estratégia de oposição à mitologia do poder que dá credibilidade ao PIB. Não é suficiente substituir a imagem viril e forte (sic) associada ao PIB pelas propostas de uma nova economia alternativa - soft - baseada na compaixão com os pobres e na sensibilidade em relação à natureza. Deveríamos desenvolver indicadores que desafiem o poder entrincheirado de um grupo étnico sobre o outro, dos homens sobre as mulheres, dos ricos sobre os pobres e dos humanos sobre a natureza, assim fortificando a resistência à ideologia do crescimento e da dominação. Assim, em lugar do PIB (GNP), Cobb propõe o indicador de progresso genuíno IPG (GPI - genuine progress indicator), a ser expresso em termos monetários. Trata-se da proposta de uma medida integrada que venha a combinar uma variedade de valores sociais e ecológicos em um único número, medido anualmente em termos monetários[24]. Englobaria o consumo pessoal[25], adicionaria valor aos trabalhos domésticos e serviços para o capital e subtrairia custos associados à poluição, a acidentes, à perda de lazer, ao aumento do desemprego, à degradação dos recursos naturais. Cobb alega que os demais indicadores sociais já usados e aqui apontados não têm impacto porque não  são expressos em valores monetários. Sendo calculados em uma mesma escala, PIB e IPG poderiam ser apresentados em  gráficos um ao lado do outro, assim evidenciando o quanto nossas vidas pioram, enquanto a retórica governamental e empresarial  alardeia avanços econômicos.
            Todavia, mesmo indicadores como  o IGP proposto serão insatisfatórios para descrever o nível de bem-estar de uma população, se não nos informarem sobre as disparidades  espaciais e de classes, internas em cada país.  Neste sentido, alguns estudos começam a serem realizados, comparando o IDH de municípios brasileiros[26], estabelecendo também um ranking entre os mais e os menos desenvolvidos. Porém, dadas as desigualdades internas, que enquistam favelas em cidades e em bairros até bem situados no ranking das condições de vida,  ou a políticas urbanas que tendem a ignorar a presença das favelas  - nem chegam a aparecer em alguns mapas -  esses estudos tendem a ser um  mero exercício de adestramento metodológico para seus autores.

Propostas para um Índice de Qualidade de Vida - IQV


            Mencionamos acima uma mudança paulatina na concepção do que é desenvolvimento, que tem evoluído desde uma mensuração isolada do PIB para indicadores que levam em conta fatores que indiciam o bem-estar humano. Assim, ao mudar-se da simples aferição do crescimento da produção para  uma metodologia de avaliação que enfoque o bem-estar médio da população, afastamo-nos do equívoco de considerar boas  aquelas sociedades que tenham contabilmente alto nível per capita de PIB, mas com sua gente mantida predominantemente iletrada e doente.
            Contudo, as variáveis usadas pelo IDH para que se avalie o nível de desenvolvimento humano ainda não deixam perceber os níveis de qualidade de vida, por não incorporarem a dimensão ambiental: as pessoas podem ter boa escolaridade, longa expectativa de vida, acesso às riquezas geradas, mas morarem e trabalharem em locais poluídos, sujeitos a riscos, conviverem com águas sujas, respirarem poluentes e habitarem compactamente selvas de pedra deprimentes, onde as cores predominantes sejam os tons de cinza do cimento e do asfalto.
            Assim, o real bem-estar tem de envolver também aspectos ambientais. Da mesma forma que não se pode considerar que tenha uma vida de qualidade uma pessoa que viva em cenários idílicos e hígidos, mas sem acesso à educação, aos serviços de saúde e à tecnologia contemporânea, tampouco pode ser bom  ter tudo isso se não se tem um ambiente natural e saudável em torno.
            O conceito de qualidade de vida é aqui proposto como um conceito no qual a questão ambiental se agregue aos demais ítens hoje mensurados pelo IDH. Propomos que "qualidade de vida" seja definida como a soma das condições econômicas, ambientais, científico-culturais e políticas coletivamente construídas e postas à disposição dos indivíduos para que estes possam realizar suas potencialidades: inclui a acessibilidade à produção e ao consumo, aos meios para produzir cultura, ciência e arte, bem como pressupõe a existência de mecanismos de comunicação, de informação, de participação e de influência nos destinos coletivos, através da gestão territorial que assegure água e ar limpos, higidez ambiental, equipamentos coletivos urbanos, alimentos saudáveis e a disponibilidade de espaços naturais amenos urbanos, bem como da preservação de ecossistemas naturais.

                        Assim, mensurar qualidade de vida implicaria em mensurar:

1. níveis de conhecimento e tecnologia já desenvolvidos e os mecanismos e fundos disponíveis para o seu fomento;
2. canais institucionais democráticos para a participação e a geração de decisões coletivas e para a negociação de conflitos;
3. mecanismos de acesso à produção (financiamentos);
4. mecanismos de acessibilidade ao consumo (distribuição de renda, de alimentos e acesso aos equipamentos coletivos - água, luz, saneamento, etc.);
5. canais democratizados de comunicação e de informação;
6. proporção de áreas verdes para a população urbana; proporção de áreas de biodiversidade protegidas;
7. organismos governamentais e não-governamentais voltados para a implementação da qualidade de vida (volume de recursos financeiros e de pessoal alocados para as políticas sócio-ambientais);
8. grau de integração/intersettorialidade das políticas públicas.

A lista não é exautivae convidamos os leitores a contribuir com idéias.

            Listamos a seguir, de forma assistemática e não-exaustiva, alguns destes pontos indicativos da qualidade de vida no seu conjunto:

qualidade habitacional: média de pessoas por m2 domiciliar; quantidade de domicílios ligados às redes de abastecimento de água, de eletricidade, de esgotos, de telefonia; extensão dessas redes e das vias urbanas calçadas;

qualidade educacional: matrículas escolares/ população em idade escolar; nível médio de escolaridade;  nível médio de escolaridade feminina (considerada como fator alavancador de desenvolvimento);  número de professores secundários/ população em idade escolar; número de jornais e de livros vendidos; número de livrarias disponíveis; número de centros culturais/ população; número de entradas de teatro vendidas em relação à população adulta e em relação à população infantil (espetáculos infantis)

qualidade da saúde: expectativa de vida; mortalidade infantil; morbidade materna; número de leitos e de médicos à disposição da população; relação de mortes por pacientes hospitalares; quantidade de proteína animal distribuída à população de menos de 15 anos, pela rede pública de ensino e pelas creches;

condições de trabalho: quantidade de acidentes de trabalho/ população trabalhadora industrial e agrícola; extensão das  jornadas; níveis salariais médios por setor; presença de mão de obra infantil/ total da população trabalhadora; o grau de diferença entre as rendas mais altas e mais baixas advindas do trabalho assalariado;

diversidade e horizontalidade na comunicação social: número de aparelhos de rádios e televisões; número de estações emissoras; número e tiragens de jornais impressos; quantidade de salas para cinemas e teatros; número de horas semanais de programas de rádio e tv por cidade com informativos sobre saúde, meio ambiente, cidadania e educativos em geral; comunicação comunitária (quantidade de jornais, emissoras de rádio e tv por bairro); quantidade de bibliotecas por cidade e bairro; relação de emissoras, jornais e revistas por proprietário; número de computadores ligados à Internet;

qualidade do transporte coletivo: assentos/hora disponíveis sobre trilhos para a população urbana e interurbana; assentos/hora por veículo coletivo; tempo médio de deslocamento entre a moradia e o local de trabalho;

qualidade ambiental urbana: área verde e/ou áreas amenas urbanas per capita;  distância média das moradias a essas áreas; níveis de emissão de  CFC (clorofluorcarbono), de dióxido de carbono e de outros dejetos químicos; volume e qualidade da água potável disponível; destino dado ao lixo; valor de equipamentos industriais anti-poluição existentes/valor da produção;

qualidade ambiental  não urbana: níveis de acidificação e de contaminação tóxica dos solos; evolução da área de desertificação em relação à área total agrícola e de florestas; taxa de deflorestamento x taxas de  reflorestamento; distância da área destinada a rejeitos radioativos em relação à área de vida das populações;

qualidade, pluralidade e horizontalidade nos canais  de decisão coletiva: recursos financeiros e de pessoal destinados à gestão - governamental e não-governamental - dos ítens acima; velocidade na tramitação processual administrativa e judicial; número de conselhos democráticos deliberativos, plurais e paritários;, com discriminação de número de reuniões e de participantes em um dado período; acessibilidade à candidatura a cargos eletivos; custo de uma campanha eleitoral.

            Dissemos acima que os níveis de desejo por qualidade de vida e as escolhas substantivas podem estar afetadas pela resignação ou pelo consumismo. Assim, seria interessante efetuar-se uma pesquisa para que se examinasse o que as pessoas, ao se permitirem sonhar, desejariam. Ou até que ponto e em qual direção, ousariam desenhar condições de vida diferentes das próprias. Até que ponto os ítens abaixo descritos seriam predominantemente significantes e valorados?

Moradia:  habitar um lugar saudável, de clima ameno, limpo, dotado de água, luz , saneamento e energia, ligado ao mundo por todos os meios da tecnologia comunicacional, acessível mas sossegado, seguro (sem catástrofes ambientais, sem ameaças de pestes, epidemias e endemias, sem riscos industriais e sem violência humana), com pólos locais de convívio, de educação, cultura e esportes (escolas, bibliotecas, cinema, teatro, ginásios desportivos), onde haja beleza natural, espaço de lazer e contato com a natureza não-degradada.

Trabalho: além da sobrevivência financeira, preservação da própria saúde no processo de trabalho, um sentido de realização, de criação, com todos os bons aspectos físicos já acima apontados para a habitação, acrescidos de uma boa convivência  e, o mais importante, sem tempos de trabalho extensos e rígidos.

Natureza: equilíbrio entre uma natureza preservada na sua biodiversidade, onde bancos genéticos, mananciais de águas, fontes de alimentos e de matérias primas sejam respeitados, e, no que se refere ao meio urbano, a presença da natureza seja mantida, para o convívio  ameno e repousante do urbanitas com outros seres vivos - animais e vegetais - em espaços amplos, abertos, belos e acessíveis.

A necessidade do IQV local


            Os estudos sobre indicadores enfatizam a sua utilidade para a formulação de política nacional e de acordos internacionais. Entendemos, porém, que os pontos indicativos de qualidade de vida devem ser desagregados, isto é, mensurados sobretudo localmente, a partir da identificação de micro-espaços minimamente homogêneos (a favela, o bairro, os distritos municipais). Essa ênfase no micro é muito importante, pois possibilita tomar medidas contra a estratificação espacial,  o que repercutirá na luta contra a desigualdade sócio-econômica, bem como para salientar a necessidade de políticas preservacionistas. Até aqui, a noção equivocada do  que é qualidade de vida tem sido eminentemente metropolitana e, neste sentido, as políticas de desenvolvimento local entre nós têm provocado uma razzia nas amenidades locais e a expulsão de sua população, caracterizando verdadeiras guerras de ocupação. Um IQV local contribuirá para nortear políticas: locais, em um esquema comparativo da alocação de recursos. Já há alguns estudos a respeito (ver capítulo sobre Desigualdades...)
            Indicadores econômicos, sociais, até mesmo ambientais já existem, isoladamente. Falta, todavia, uma metodologia para agregá-los em um único índice, que poderia ser o IQV (Índice de Qualidade de Vida). Que, com base na proposta de Cobb, deveria ter uma interpretação monetária. Por exemplo: quanto custa ao país, como projeção para o futuro, ter uma infância negligenciada e uma escolaridade abaixo do medíocre? Qual é o custo para o sistema de saúde, de não tornarmos acessíveis a todos a água potável e as ligações com um sistema de coleta de esgotos, ou de não termos políticas de restrição à emissão de dejetos químicos?
            O que tem sido tentado até aqui, mais a nível de políticas da ONU, é usar alguns indicadores como fatores de promoção ou de restrição ao acesso a financiamentos internacionais, como, por exemplo, o estímulo à educação feminina (se um país tem políticas de promoção e de educação da mulher, pode candidatar-se a recursos dos fundos internacionais; se obsta o desenvolvimento e independência da mulher, proibindo-a a ter acesso à educação, não teria direito a recursos). No caso das políticas sociais e ambientais brasileiras, não há notícias destes mecanismos. Ao contrário, invoca-se geralmente a desigualdade e a degradação natural como argumentos em prol da necessidade de liberação de recursos cuja aplicação efetiva não alivia tais sintomas.
            A ONU escolheu algumas  metas modestas que seriam realizadas no mundo até o ano 2.000 (e não o foram, disto sabemos todos), referentes à qualidade de vida, tais como acesso universal à educação básica, erradicação do analfabetismo, acesso universal à água limpa e a saneamento básico e a proteção à infância em situação de risco.
           
            Sobre a questão ambiental, a Agenda 21 da ONU sugere tímidos pontos de compromisso mútuo, que são difíceis de serem acordados pelos governos nacionais, tais como a redução das emissõs de dióxido de carbono.
            No que diz respeito aos problemas ambientais brasileiros e seus indicadores, não temos conhecimento de estudos que os sistematizem. No contexto dos estudos internacionais comparados, as referências ao Brasil aparecem na sua recusa em ver-se responsabilizado pelo efeito estufa que teria, no nosso caso, como causa as queimadas na Floresta Amazônica.
            Seria por demais pretensioso  arrematar uma proposta final de indicador de qualidade de vida. (Acreditamos que a resenha aqui feita já seja uma contribuição para um estudo que se proponha a encontrar sua melhor equação). Contudo, vale insistir que um indicador único, que avalie aspectos humanos e ambientais, é metodologicamente possível, bem como que é necessário que ele seja expresso monetariamente e cotejado ao PIB.

Um novo paradigma nas ciências sociais: a dimensão ética da qualidade de vida

            Kuhn definiu o paradigma como o modelo ou padrão aceito, que dá à comunidade científica um critério para propor e para solucionar problemas (o que estiver fora do paradigma será visto como não-problema, ou como algo metafísico).  A aceitação de um paradigma libera a comunidade científica da necessidade de reexaminar constantemente os seus princípios. Assim, o paradigma científico diz respeito à constelação de crenças, valores, técnicas que os membros de uma comunidade compartilham, e também a um  elemento desta constelação, as soluções concretas de problemas.
            Os paradigmas, acrescentou Kuhn, mudam, são dessacralizados, rechaçados, convivem em confusão em um período de crise, nascem dos antigos,  incorporando  o seu vocabulário e aparato conceitual..   O período anterior à sagração de um novo paradigma está marcado por debates sobre métodos, problemas e regras de soluções aceitáveis.  As teorias, diz Kuhn, não surgem gradualmente para ajustarem-se a fatos que sempre se encontraram presentes: elas surgem aos mesmo tempo que os fatos aos quais se ajustam, a partir de uma reformulação revolucionária da tradição anterior.
            Háverá fatos novos na vida social contemporânea que expliquem o surgimento da preocupação, no plano teórico-epistemológico, com a qualidade de vida e com  sua proposta como sendo uma alteração paradigmática? O despontar e expansão de novos movimentos sociais - ambientalistas, de defesa dos direitos civis e humanos, contraculturais, alternativos, étnicos, de gênero, etc. -  são vistos como evidências disso.  Por outro lado, a atual hegemonia das políticas ditas neoliberais, os fenômenos da globalização e das modificações no mundo da produção são apontados como causas da desorganização, da pauperização e da exclusão, provocando reflexões sobre políticas compensatórias, de reajustes, bem como sobre a necessidade de se reorientar a ação estatal e questionar a Economia enquanto uma ciência empírica, desvinculada de preceitos éticos.
            Todos estes aspectos parecem se ajustar ao que Kuhn percebeu: que o questionamento e crise de um modelo explicativo e de intervenção surge concomitantemente com os novos fatos que colocam em cheque a validade do paradigma anterior. No caso, a crença no paradigma do desenvolvimento econômico de um país como podendo existir desvinculado do bem-estar social da sua população e este descomprometido com o meio ambiente, vêm sendo desacreditada. Continua faltando, contudo, colocar de pé indicadores e mecanismos de intervenção novos e interligados, que operacionalizem os novos pressupostos que começam a se disseminar.






[1] Ferreira, Lúcia da Costa. Os ambientalistas, os direitos sociais e o universo da cidadania. Incertezas de Sustentabilidade na globalização. Leila da Costa Ferreira e Eduardo Viola (orgs.). Campinas, Editora da Unicamp, 1996, pp. 241 - 277.
[2] Prêmio Nobel de Economia em 1998, Amartya Sem é autor, dentre outros, do livro Desenvolvimento como Liberdade, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
[3] Nussbaum, Martha & Sen, Amartya (eds.). The Quality of Life. Clariton Paperbacks, 1995
[4] Macgillivray, ª (ed). Accounting for Change – papers from na International Seminar Toynbee Hall, 1994. The New Economics Foundation, 1995.
[5] Hammond, A. et al.  Environmental Indicators: a systematic approach to measuring and reporting on environmental policy performance in the context of sustainable development. World Resources Institute. May, 1995.
[6] Durkheim, Émile. A Divisão do Trabalho Social.. São Paulo, Livraria Martins Fontes, 1977. vol 2, pp 19-22.
[7] Entrevista à Revista Veja, 08/01/97.
[8] Allardt, in Nussbaum, Martha & Sen, Amartya (eds.). The Quality of Life. Clariton Paperbacks, 1995:88.


[9] Nussbaum & Sen, op.cit., p. 30)
[10]David Crocker o traduz como "efetividades". Lua Nova n. 31, São Paulo, 1993.
[11] COBB. Imagery and Indicators, in Accounting for Change, op. cit., p. 37
[12]Accounting for Change. The New Economics Foundation, Londres, 1994.
[13]Fonte: Psacharopoulos, 1991,transcrito por Fernando Dantas na Gazeta Mercantil, 24/2/97
[14]  Estudo da economista Sonia Rocha, em "Governabilidade e Pobreza", Lícia Valladares & Magda Prates Coelho, Ed. Civilização Brasileira, 1994).
[15]  Revista Perspectiva, Sead, julho de 1990.
[16]Índice que mensura o grau de concentração de uma distribuição, cujo valor varia de zero (a perfeita igualdade) até um (a desigualdade máxima)
[17]PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - IBGE, 1993.
[18]José de Souza Martins (USP).
[19]Fernando Henrique Cardoso, "Uma Revolução Silenciosa", Folha de São Paulo, 29/12/96.
[20]Fernando Dantas: Brasil de desigualdades resiste ao Plano Real. Gazeta Mercantil, 24/2/97.
[21]Cf Hammond et al. Environmental Indicators. World Resources Institute, 1995.
[22]Hammond et al, op. cit, pp 13.
[23] IUCN/UNEP/WWF. Caring for the Earth: a strategy for sustainable living. Gland, 1991.
1991: 198 – 201.
[24]Recentemente, um grupo de diferentes universidades americanas, chefiado pelo professor de Economia Ecológica. Robert Costanza, da Universidade de Maryland, avaliou em 33 trilhões de dólares anuais os benefícios econômicos fornecidos pela natureza para as atividades humanas.
[25]O que abre uma discussão: Consumo deve ser atributo positivo ou negativo? Para nosso atual presidente, e no nosso contexto, aumento de consumo é indício de bem-estar. Para o movimento ambientalista europeu e norte-americano, o consumo é o problema: "abandon affluence"; "green, not greed" são motes anti-consumistas.
[26] Ver, por exemplo, a pesquisa Condições de Vida nos Municípios de Minas Gerais, da Fundação João Pinheiro, onde se compara os anos de 1970 e 1991, a partir de 16 indicadores econômico-sociais.